
Esta é uma tradução livre de um ensinamento de Rob Burbea transmitido em um retiro em Gaia House, em 2014. A gravação e transcrição originais podem ser acessadas aqui.
Hoje eu gostaria de falar um pouco sobre samādhi. Essa é uma palavra que muitos de vocês já devem ter ouvido. Alguns, talvez não. Normalmente ela é traduzida como “concentração”, mas eu espero que possa ampliar um pouco o senso do que ela significa, e na verdade, abrir a discussão sobre o que é isso e o que está envolvido, etc.
Eu quero falar sobre o tema um tanto genericamente, mas também especificamente. Há um bocado de pessoas aqui, alguns estão fazendo diferentes práticas, com históricos bem diferentes, diferentes familiaridades, etc, mas eu espero que tenha algo útil para todos.
Para começar apenas com uma breve introdução e dar o contexto da discussão: é possível, definitivamente, conceber o caminho e o que está envolvido nele de diferentes maneiras, mesmo se nos restringirmos ao budismo. Você e eu somos livres, completamente livres, para conceber o caminho da forma que desejarmos. Não há ninguém mais que possa te dizer como concebê-lo. Somos livres nesse sentido. Por favor, não ouça nada do que estou dizendo como uma tentativa de te forçar uma opinião, nós somos livres. Mas, dentro dessa liberdade, o que eu espero é que possamos questionar e estarmos cientes do seguinte: qual minha concepção do caminho, ou concepções? Como tudo isso se encaixa para mim? Não que você tenha que pensar isto ou aquilo, mas creio que questionar é uma necessidade, é importante, o mesmo sobre estar consciente sobre quais são as concepções.
Se você chegou no mundo da Meditação de Insight e escutou diferentes ensinamentos na internet ou nesta sala, por exemplo, se você escutar um pouco mais atentamente, pode ser que te ocorra que há uma boa diferença no que está sendo comunicado como concepção do caminho. Espero que vocês tenham tido essa percepção. Às vezes, isso não acontece. As pessoas parecem pensar que estamos todos dizendo a mesma coisa, algo como “apenas aceite as coisas, e tente ter atenção plena.” Agora, essa diferença, mesmo dentro do mundo da Meditação de Insight, pode dar origem a confusão. Se você está muito interessado no Buda e seus ensinamentos, se isso é importante para você (e não precisa ser esse o caso, mas se você estiver interessado), então você pode ter acumulado o entendimento de que sim, ele fala sobre atenção plena, e ele fala sobre mettā, ele fala sobre insight, sobre samādhi, e também sobre desapego e generosidade. E ele diz que todas essas coisas são importantes.
Mas nós podemos estar um pouco inseguros: como tudo isso se encaixa? Eu as pratico apenas porque parece que foi isso que ele ensinou, então okay, eu praticarei, e elas se encaixam simplesmente porque vêm da mesma fonte. Mas não é claro, muitas vezes, como tudo isso se articula de fato. Nós podemos também ver que tudo isso nos move, um tanto genericamente, na direção da redução do sofrimento; é uma das coisas que esses elementos têm em comum. Mas pode ser bem confuso como todos esses elementos se relacionam, e podemos ficar presos em uma concepção limitada do que é o caminho e o que a prática envolve. Isso é bem comum.
Uma das concepções mais comuns do caminho na qual as pessoas chegam e permanecem por anos ou mesmo décadas — estou na verdade citando um yogue que me contou isto — “eu pensei por anos que era sobre estar ‘presente com a sua experiência, e meio que tentar estar no seu corpo, tentar ser gentil e tentar aceitar as coisas”. E é isso. Não há nada além. Ou, se há algo mais, o que quer que precise acontecer, tudo o mais acontecerá como um desdobramento natural desse “estar com a experiência como ela é”. Muito, muito comum. Isso é uma concepção, seja ela consciente ou inconsciente, ela parece ser bem aberta. Seu som, seu ethos, é o de abertura e sensibilidade à abertura. Ela se parece como uma atitude de abertura. Mas, na verdade, é bem limitada e limitante.
Poderíamos, então, ver isso como uma opção. É uma opção. É, se você quiser pensar assim, uma engrenagem, como um carro ou bicicleta que possui diferentes engrenagens. É um apetrecho da prática. Muito belo, amável, frutífero, mas é apenas uma ferramenta. E se eu apenas tenho isso, então é limitado e limitante. É bem raro ter uma concepção ou visão clara a respeito de todos os elementos do caminho que podemos ter ouvido, e como eles se articulam. E é compreensível que seja raro. Novamente, não estou tentando te convencer de nada. Apenas estou apresentando um modo de ampliar as coisas, e algumas formas alternativas de enxergá-las.
E se trabalharmos de trás pra frente como um princípio? Invés de trabalhar diretamente a partir do que está na minha frente e parece estar demandando minha atenção porque estou sofrendo com isso. Para onde o Buda estava apontando? Para onde estamos indo? Só para ter um senso de onde poderia ser, para o que ele está apontando, e então permitir esse entendimento ter suas implicações para como estou vendo a prática aqui e agora. Trabalhando de trás pra frente, então. Para onde estamos indo?
Agora, claro, alguns dizem — e isso é bem popular — que não estmaos indo a lugar nenhum. É uma frase bem popular: “O caminho não leva a lugar algum”. O que isso significa? O que significa dizer que isso não leva a lugar nenhum? Porque há mundos de diferença no que essa frase pode significar. Frequentemente, novamente, esse “indo a lugar algum” apenas vem a afunilar seu significado a ‘apenas esteja presente’. “Você não está indo a lugar algum, de qualquer forma. Apenas esteja presente com o que está acontecendo, com o que está surgindo.” Nós tentamos e vivemos uma vida de atenção plena e uma vida de presença, e é isso que quer dizer: tentar viver uma vida de presença.
Mas o que essa frase vem a significar muito popularmente hoje em dia não é de modo algum o significado original do caminho que não leva a nada. Essa frase tem suas origens no Budismo Mahayana Indiano quando ela evoluiu, nos textos Prajñāpāramitā, lindos textos, no Vajrayana, os ensinamentos tântricos — é muito comum lá. E então no Chan, no Zen. Mas isso significa coisas totalmente diferentes de “apenas estar presente”. Se alguém olhar a totalidade dos ensinamentos do Buda, novamente, o que parece que ele está apontando? Qual é esse projeto e todas essas palavras e todos esses textos, para o que eles apontam? É muito mais do que estar presente, estar em contato, ter atenção plena. Uma coisa que você pode meio que supor é que ele está interessado em derrubar ou dissolver avijjā. Alguns de vocês conhecem essa palavra — ilusão fundamental, ignorância. É para lá que todo o caminho está indo — um pouco, muito, completamente, que seja, mas esta é a direção: derrubar ou dissolver avijjā, ilusão, o que significa crenças fundamentais sobre a existência.
Frequentemente, nós não estamos sequer conscientes do que elas são. Crenças fundamentais sobre a existência, ele quer dissolvê-las, derrubá-las. Algo muito radical aqui em sua inteireza. Nisso, estamos liberando, se você assim quiser, todo um senso de existência diferente. Isso é, eu diria, gradual. E é uma forma, possivelmente — novamente, estou apenas apresentando uma forma, não estou tentando vender-lhes nada — um modo de ter uma visão geral disso tudo. Okay, então essa é a direção, e a visão geral da forma de como voar neste caminho, como trilhá-lo, pode ser encarada como tendo duas asas: uma delas é o insight, e a outra, o cultivo.
Essas não são duas coisas realmente separadas. Mas é útil, ou pode ser útil, vê-las separadas: insight e cultivo. Ambos são necessários. O que essas coisas significam, muito brevemente? Insight, nós podemos dizer que significa ver, num sentido amplo, é enxergar, entender, se relacionar, ver de um modo libertador. É isso que insight é. É meio que uma forma de experienciar as coisas, qualquer modo de experimentar ou olhar as coisas, que traga liberdade. Relacionado a isso, e também vindo como um resultado, está o entendimento da natureza do “eu” e das coisas, e esse entendimento se aprofunda cada vez mais, abrindo níveis de liberdade ainda mais profundos. A pergunta é como? Como podemos fazer isso? Como podemos trilhar esse caminho? Como podemos acessar uma liberdade cada vez mais profunda? Não falarei disso, seria uma fala diferente.
Insight e cultivo, como duas asas. Quanto ao cultivo, o Buda fala sobre qualidades que são kusala, hábeis ou positivas. Estamos cultivando, poderíamos dizer, qualidades belas de coração. Generosidade, bondade, compaixão, equanimidade. Insight mesmo, é um tipo de cultivo. Atenção plena. Samādhi também. Essas são qualidades belas do coração que são cultiváveis, qualidades hábeis. Por quê? Por que cultiva-las? Qual o ponto? Porque descobrimos, ao cultivá-las, com a prática, que elas trazem felicidade. Um estado de mettā é um estado feliz. Um estado de compaixão também é um estado feliz. Eles trazem paz. Eles trazem uma nutrição profunda. Generosidade, mettā, samādhi, essas qualidades trazem uma nutrição profunda ao ser, e isso é algo pelo qual estamos famintos.
Uma das razões pelas quais o consumismo é tão rampante em nossa cultura, na cultura global, uma das razões pelas quais arrasamos o planeta sem pensar sobre isso — uma das razões — é porque não temos nutrição interior suficiente, então buscamos nos lugares errados por essa satisfação, e estamos tão desesperados que não nos importamos com o que destruímos no processo de tentar conseguir satisfação. Então, satisfação é algo imenso. A satisfação profunda vem dessas qualidades belas. E também, quando essas qualidades são fortes no ser, é muito mais fácil desapegar. Muito mais fácil soltar a bagagem psicológica e emocional, a bagagem material e a identidade. Quando há um bocado de mettā, o desapego é muito mais fácil, por exemplo.
Essas qualidades que são cultiváveis, e o Buda recomendava seu cultivo, também muito maravilhosamente permitem que nosso olhar seja mais profundo. Essa é outra razão pela qual o Buda disse para cultivá-las. Quando essas qualidades são poderosas, nós na verdade enxergamos mais profundamente. E na prática de cultivá-las, nos movemos para dentro e fora de diferentes estados, inevitavelmente: a qualidade é forte, é fraca, ou não está lá, o oposto está presente, então ela se torna forte novamente. Então começamos a entender algo sobre a percepção. E isso é a coisa mais importante. O mais importante de todo o caminho é o entendimento a respeito da natureza da percepção. E é uma das mais importantes razões pelas quais o cultivo é importante. Então, há um bocado de razões.
Nós podemos dizer que o insight é ver de modos diferentes e hábeis. E nós podemos dizer que cultivar é ser de modos diferentes e hábeis ou positivos. Ver de diferentes modos, ser de diferentes modos. Insight e cultivo. Como eu disse, não são separados. Uma vez tendo visto de modos hábeis, isso muda a forma como eu “sou”. Nesse momento, eu “sou” diferente. Eu sinto diferente. O estado de mente é diferente. E quando eu “sou” de um modo diferente, vejo de outra forma. Quando eu “sou” com muita mettā, eu vejo com muita mettā, e o mundo parece diferente: ele se mostra mais suave, radiante, belo, não separado. Voltando ao que dissemos antes, esse “estar em contato” que tão frequentemente se torna o todo e a finalidade da prática para muitas pessoas, esse “estar presente” é apenas um modo de ser e ver relativamente hábil.
Samādhi, é uma das qualidades que o Buda enfatizou o cultivo. E o que isso significa? Disse que é normalmente traduzido como “concentração”, mas novamente, se usarmos esse princípio: para onde estamos indo? Quando o buda falou de samādhi, sobre o que ele estava falando realmente? Quando ele descreve estados de samādhi, ele está descrevendo todo um espectro de aprofundamento da consciência. E esse escopo de estados, ou essa direção, se preferir, tem em comum algumas coisas. Uma delas é que envolve o corpo todo. Envolve também um tipo de unificação do senso do corpo, um senso de totalidade e integração da mente com o corpo. Não é como se a mente estivesse aqui em cima, e o corpo lá embaixo. Há um senso da mente ocupando todo o espaço do corpo. Esse é um padrão do aprofundamento do samādhi.
Harmonização, se podemos usar essa palavra — as energias, se preferir, desse corpo e mente, parecem harmonizadas. Elas se alinham. E há um senso de bem-estar por todo o espaço do corpo. Então essa é uma experiência, ou todo um espectro possível de experiências. Não precisa ser muito dramático. Mas a experiência do corpo em estados de samādhi não é tanto uma experiência de ossos e dedos e nervos e o que todos nós sabemos muito bem sobre a anatomia e fisiologia do corpo. É uma experiência, se eu puder usar esse termo, do corpo energético. Essa sensação, esse espaço aqui que eu chamo de meu corpo, começa a ser sentido como um campo de energia. É isso — e não pretendo fazer uma grande questão a partir desse conceito — que entra em alinhamento e harmonização e algum grau de bem-estar.
Então, isso é sobre o que o Buda está falando quando ele fala de samādhi. É para lá que estamos indo. Então isso pode, se você desejar, informar o que eu devo tomar como prática? O que pode me direcionar? (1) Uma possibilidade — de modo bem geral, há três possibilidades — uma delas é talvez a mais comum quando as pessoas pensam em samādhi ou concentração: colocar a mente em um ponto. Muito frequentemente é sob as narinas ou na ponta do nariz, ou no lábio superior ou em algum lugar dentro das narinas, ou ainda no abdomen, ou nas frases usadas em mettā (que você fique bem, que você fique em paz). Colocar a mente em algum lugar, e tentar mantê-la lá. Tentar, e então retornar de novo e de novo. Ela se dispersará, então você retoma novamente.
Dessa forma, você pode tornar a atenção bem pequena, bem concentrada em um ponto. Essa é uma forma bem popular de tentar cultivar samādhi, e é provavelmente a forma mais frequentemente ensinada. Para alguns, isso funciona bem. Funciona bem no sentido de que isso evolui na direção do que o Buda estava falando quando ele usava o termo samādhi, o senso do corpo todo integrado e se sentindo muito bem e harmonizado energeticamente. Parcialmente isso funciona porque quando retornamos a mente de novo e de novo, se quiser pensar dessa forma, estamos evitando dissipar energia — a mente pensando sobre amanhã, se preocupando sobre isso ou aquilo, voltando para ontem, etc.; está indo em todas essas direções, dissipando energia, então a energia não pode acumular no corpo e na mente.
Quando ela se acumula, através de trazer a mente de volta para um ponto e permanecer lá um tanto, a energia se acumula e isto começa a ser sentido de modo diferente. Esse espaço, esse corpo energético, começa a se harmonizar. Então é parcialmente por isso que samādhi emerge daí. Mas o foco não é o ponto. Foco, nesse modo de trabalhar, é um elemento significante no que nos move para o ponto, que é samādhi. Então temos que ser cuidadosos. Se esse é seu modo de trabalhar, com a mente retomando de novo e de novo a um ponto pequeno, ou para as frases, você deve ser cuidadoso porque — direi novamente — samādhi significa mais do que foco.
De algum modo, samādhi precisa incluir o corpo todo. De algum modo é isso que queremos cultivar, para onde queremos ir. Porque como professor, o que eu ouço tão frequentemente, e é na verdade bem doloroso de ouvir, as pessoas estão comunicando um grau de sofrimento. Quão frequentemente o foco se torna o todo e a finalidade da prática, principalmente para iniciantes, digamos, nos primeiros anos de prática. Tentar focar, e é isso que estão tentando fazer, foco, foco, foco, e isso se torna a coisa mais importante. Já que estamos falando sobre trabalhar essa engenharia reversa, digamos, como você quer fazer a meditação ser seca, contraída, sem alegria e miserável? Fazendo do foco sua prioridade. [risos] Tornando isso o que você enfatiza mais do que todo o resto. E então, no topo disso, medir a si mesmo e a sua prática em termos de quão bem você está focando. Será miserável. Será contraída e sem prazer. “Quão calma está a mente? Estou distraído? Quantos pensamentos há? Já me livrei dos pensamentos?”
Isso é muito, muito importante. Muito, muito mais está envolvido além de foco. Um punhado de outros fatores estão sendo cultivados ao mesmo tempo em que trago minha mente de volta, que são na verdade mais importantes do que foco. Quando eu o perco e percebo onde minha mente está, esse perceber a atividade da mente é uma das possíveis definições de atenção plena. Nesse momento, atenção plena está sendo cultivada, e eu não estou com meu objeto primário, mas reconheço que minha mente devaneou. Brilhante. Atenção plena está sendo cultivada. E trago a mente de volta, e ela se dispersa, eu noto e trago novamente. Esse trazer de volta cultiva o músculo, o poder da mente de retornar. Isso é imenso, e mais importante do que foco.
E paciência está sendo cultivada. E isso é muito mais importante do que foco. Se eu pudesse te oferecer uma pílula que te daria foco ou paciência, eu lhe daria paciência. Servirá você muito melhor no longo termo da sua vida. Espero que gentileza seja cultivada, porque cada vez que há dispersão há uma oportunidade para os hábitos de julgamento surgirem. Posso ver isso. Posso suavizar esses hábitos, e trazer o hábito da gentileza? Isso é muito, muito mais importante do que foco.
Então eu posso começar a ver esses outros fatores. Há todo um escopo de fatores sendo cultivados, não apenas foco, mesmo se estou praticando dessa forma. Mas preciso ter uma visão ampla. Cada vez que eu me sento, talvez mesmo durante a prática, eu me abro e me relembro: o que está sendo cultivado aqui? Não é só foco.
O que frequentemente ocorre é que essa prática é dada às pessoas em seus anos iniciais de meditação, e elas tentam, e é difícil. Então elas meio que desistem após uns poucos anos. Elas meio que desistem de acompanhar a respiração, e optam por uma forma de estar presente com o que for mais proeminente. Um pouco com a respiração, mas porque é difícil e apenas frustrante, elas vão para a prática de apenas estar presente com o que quer que esteja acontecendo.
Então, se esse é o tipo de prática que alguém está fazendo, a questão é: como ela pode se aprofundar? E não digo “aprofundar” apenas o foco; digo todo o senso de para onde estamos indo quando o Buda fala sobre samādhi, o que é a direcionalidade aqui. Como eu posso me aprofundar? Apenas algumas poucas e breves coisas que podem ajudar.
(1.1) Uma delas já dissemos, é ampliar a concepção do que é a prática. É muito mais. Muito mais qualidades estão sendo cultivadas. O samādhi vem, essa beleza em algum grau, ou apenas o bem-estar, a harmonização, que vem da mistura de qualidades positivas. Não vem apenas do foco. O samādhi vem quando todas essas qualidades — a gentileza, a abertura, paciência e a estabilidade, com certeza — estão unidas. Vem dessa combinação, não apenas do foco. Então, abrir a visão a respeito da prática.
(1.2) A segunda coisa que pode ajudar é aprofundar através da ênfase na qualidade invés da quantidade. O que eu quero dizer? Que essa respiração que está acontecendo agora, se você está focando na respiração, ou essa frase na prática de mettā, neste momento desta respiração, por exemplo, essa inspiração, a atenção pode estar realmente viva e brilhante? “Essa é a única que importa.” Muito facilmente, nós priorizamos quantidade: “com quantas respirações eu posso permanecer direto? Por quanto tempo posso permanecer?”, e a vivacidade, o brilho, a energia deste momento, não é algo que enfatizamos tanto. E se invertessemos isso e enfatizassemos qualidade? Este momento desta respiração, agora, realmente vivo, realmente cheio. E deixe a quantidade tomar conta de si mesma a partir disto.
(1.3) Uma terceira coisa que pode ser útil é, na medida que a meditação se aprofunda, seja qual prática for, um fator que há em comum é que ela se torna mais sutil. Aprofundar tem a ver com sutileza mais do que qualquer outra coisa, talvez. Às vezes, quando as pessoas estão trabalhando com a respiração, elas estão, sem perceber, mantendo a respiração um tanto grosseira. Elas podem não ter um problema respiratório ou narinas entupidas, mas quando vão meditar, elas produzem uma respiração pesada, de modo que alguém próximo possa ouvi-las. Ou as frases de mettā estão sendo marteladas bem alto. Pode ser frutífero apenas, bem gentilmente, não forçar a respiração a se tornar sutil, mas permitir que isso aconteça, de modo bem gentil, talvez mais curta ou mais suave, etc. Muito, muito gentilmente, você inclina a respiração nessa direção. Porque sutileza é parte do samādhi. Manter a respiração grosseira vai estagnar as coisas.
E uma quarta possibilidade: estávamos falando sobre abrir a visão sobre o que está envolvido, sobre qualidade invés de quantidade, e gentilmente encorajar as coisas a se tornarem mais sutis quando isso parece ser possível. (1.4) Uma quarta possibilidade é mesmo se você está focando em um ponto — então estamos falando ainda sobre estar presente com um ponto nas narinas, abdomen ou onde for — incluir o corpo todo na consciência. Então podemos falar de primeiro plano e segundo plano. É como se você olhasse um objeto nesta sala, a visão pode ter esse objeto em primeiro plano, mas pode ter a consciência da sala inteira como um segundo plano. Então, mesmo que você pratique com a atenção em um ponto, pode ser muito útil ter uma consciência em segundo plano do corpo todo, por muitos motivos diferentes. Isso faz com que pare de ser tão contraído, e podemos sentir o corpo e o aperto e tensão presentes e então, relaxá-los. Realmente útil. Essa é a quarta possibilidade.
Okay. Mas isso tudo é sobre praticar retornando a atenção de volta a um pequeno ponto, se você quiser. Há outras possibilidades, se abrirmos outras avenidas para a prática. (2) Uma segunda forma que muitos acham realmente útil é tornar todo o corpo primário, a consciência no corpo como um todo sendo primária. Não apenas um ponto no corpo, mas ele inteiro. Não como segundo plano, mas sim como primeiro plano desde o início. O objeto da minha atenção é o corpo inteiro. Agora, me refiro a algo um pouco específico e talvez diferente do que alguns de vocês estão familiares. Então pensei que poderíamos tentar algo agora, se vocês puderem estar confortavelmente em uma postura de meditação agora…
Início de uma breve meditação guiada
Levará apenas uns poucos minutos. Agora, é possível relaxar o corpo, em primeiro lugar? Deixar que o corpo relaxe. Talvez apenas escanear pelo corpo, de cima abaixo, e apenas relaxá-lo.
Agora, nessa postura ereta e relaxada, há uma tonalidade no corpo. Há uma tonalidade que mantém o corpo ereto. Pode senti-la agora? Há uma direcionalidade no corpo que o mantém ereto. Pode sentir isso? Essa qualidade sobe pelo corpo, talvez passe pela barriga para as pernas.
Você consegue abrir a atenção de modo que ela se alongue um pouco além do corpo físico? Estamos prestando atenção nesse campo agora. Esse campo de consciência, e você o está alongando. Abrindo a atenção, esticando-a. E você pode estar consciente de como a energia desse espaço é sentida, a tonalidade dela, sua textura, sua vibração? Abra. Preencha com atenção. Preencha com presença.
Essa atenção continuará encolhendo; continue esticando-a, de modo que seja um pouco maior que o corpo físico. É todo um espaço que é preenchido com atenção viva, sensibilidade. O segredo está no alongar, e na vivacidade, no brilho da atenção. Pode sentir que há um tipo de energia nesse espaço? Talvez diferentes energias, diferentes vibrações, tonalidades, texturas.
Vamos apenas permanecer com isso. Gostaria de tentar algo mais. Continue esticando, esse campo continuará encolhendo. Não se preocupe, apenas estique-o novamente de modo que seja um pouco maior que o corpo todo e o preencha com sua atenção vivaz, esteja realmente presente nesse espaço e sinta-o. Agora, continuando nisso, você pode sentir como a respiração afeta esse espaço? Como a inspiração e a expiração produz ondulações nele? Qual seu efeito na energia desse espaço?
Algumas pessoas sentem um pouco a totalidade do espaço se expandindo na inspiração e contraindo na expiração. Como você sente isso? O corpo inteiro vivo. Ou, algumas pessoas sentem que a inspiração é um tanto energizante para o corpo todo, e com a expiração, há uma qualidade de relaxamento. Você pode sentir energeticamente nesse espaço.
Então, aqui estamos prestando atenção a todo o espaço e a sensação presente nele, se você quiser, sua energia. Vamos tentar mais uma coisa. Mantendo esse espaço, você pode esquecer da sua respiração. Você pode imaginar uma linha de energia, se quiser — isso pode ser visual, ou apenas imaginação cinestésica — uma linha de energia do seu umbigo ou talvez do períneo, subindo pelo centro do corpo para sua cabeça, atravessando o pescoço, talvez até saindo do topo da cabeça? O que você sente, apenas imaginando isso? E a tonalidade do corpo ao redor disso, a energia ao redor disso. Como você sente?
Talvez você queira adicionar mais duas linhas de energia, vindas do umbigo ou pelas pernas. Elas não precisam dobrar nos joelhos, podem passar por fora deles, se seus joelhos estão dobrados. Então você tem três linhas de energia que está imaginando, e notando o que você sente nesse espaço energético do corpo. Como se sente?
Fim da meditação guiada
Okay. Vocês podem sair do seu estado profundo agora. [risos] Conseguiram pegar um pouco do senso do que pode ser frutífero? Nessa forma de trabalhar, podemos ou não incluir a respiração. Pode incluir a respiração se for útil, incluir o senso desse espaço expandindo e contraindo, incluir o senso de energização com a expiração e relaxamento com a expiração. Essas são qualidades energéticas. Talvez seja útil às vezes incluir a respiração, e se não for, sem problemas — você está apenas com todo o espaço; é este seu foco, se quiser. Ou incluir mettā.
Mas com o que estamos lidando aqui é com as ressonâncias, a qualidade energética desse espaço todo, a sensação da energia ou como a respiração ou mettā afeta a sensação da energia. É com isso que estamos brincando. Então é diferente da atenção plena ao corpo, como quando dou uma topada no meu dedão e traço atenção plena às sensações disso. Do modo que falei agora é realmente sobre a qualidade mais energética. Nessa forma de trabalhar, esse espaço é com o que estou brincando, e qualquer coisa serve, você pode fazer o que quiser. Pode usar sua imaginação ou não. Pode trabalhar com a respiração ou não. Tudo no que estou interessado é nesse campo de energia, e apenas encorajá-lo a sentir relativamente agradável, talvez prazeroso. Apenas algum grau de bem-estar. Estamos cuidando desse campo de qualquer forma que você gostar. Tanto prazer e bem-estar quanto possíveis. É isso que estamos fazendo, e nisso, qualquer coisa serve.
É um pouco como alguém improvisando com uma roda de cerâmica. Você sabe, o pé controla o passo, a velocidade da rotação da roda, e as mãos estão dando forma a algo, mas talvez eles não saibam bem o que estão fazendo, eles estão improvisando — moldando um pouco aqui e ali. Nós estamos moldando esse campo em um estado de relativo bem estar, de beleza mesmo. Essa é a segunda possibilidade quando falamos de samādhi.
(3) Uma terceira possibilidade é ainda mais ampla. Samādhi vem quando há desapego. Soltar profundamente ânsia ou apego resultará nisto. Novamente, em termos do corpo energético, e isto é algo que você pode checar por si mesmo, quando há profunda soltura de ânsia e apego, esse corpo energético começa a se sentir mais aberto, mais belo, mais harmonizado, mais desatado, e isso é muito próximo de um estado de samādhi. É por isso que insight traz samādhi, porque insight é o negócio de desapegar e soltar, ver de um modo que traz liberação. Então soltar profundamente é na verdade um modo de abrir um tipo de samādhi. E há diferentes formas disso acontecer.
Um modo muito popular é com uma atenção muito aberta. Acabamos de experimentar um foco um pouco maior que o corpo, mas você pode ir muito maior do que isso, estar consciente das sensações do corpo e dos sons também, por exemplo, e essa atenção é bem ampla, maior do que o prédio. Centrada no corpo, aqui, mas muito ampla. E dentro disso, o que você está fazendo é deixando ir, deixando ser. Fenômenos estão vindo e indo, sons e sensações corporais, isto e aquilo, pensamentos, e seu trabalho é apenas deixá-los vir e ir embora. Deixe tudo surgir e estar. Isso é o que alguém estaria fazendo com esse campo de atenção amplo.
O que acontecerá é, por fim, que haverá calma e abertura, e o corpo começará a ser sentido como bem leve, muito aberto, muito harmonizado. E há todo um campo do que é possível aqui. Mas isso é samādhi. Um tipo de samādhi. Nisso, a estabilidade está no espaço. Não está neste ou naquele fenômeno no espaço; é o espaço em si. É isso que está permanecendo estável. O espaço é como o pano de fundo no qual diferentes coisas surgem e desaparecem. Ou é no modo de olhar os fenômenos, ou o modo de se relacionar com eles. Eu posso estar olhando para eles e soltando ânsia/apego, olhando para eles e soltando, e o foco está nesse modo de olhar. Ou olhar para eles e notar a impermanência.
Então, invés de necessariamente focar em permanecer com um objeto, o foco pode ser no que a mente está fazendo em relação com ele, e soltá-lo de certas formas. Pode ser em relação a um objeto. Posso estar sentado com uma mágoa, uma tristeza, um luto. Talvez estou sentando com dor no meu quadril. Mas estou olhando de um certo modo para essa dor. Estou me relacionando de um modo muito particular com esse luto, essa tristeza, aquela depressão, e isto é meu foco, ainda que inclua um objeto. Okay? Diferentes possibilidades. Podem ver para onde estamos indo com esse samādhi? Há um escopo de possibilidades para trabalhar com isso.
Para recapitular o que foi dito no início: podemos pensar sobre meditação, e certamente sobre o caminho espiritual, se é um termo que você use, de muitas formas diferentes, e somos absolutamente livres para fazer isso. Mas pode ser bem comum que as pessoas concebam a meditação ou sua prática espiritual, por mais importante que seja, como não tendo objetivos, livre da vontade, e livre de “fazer”. Sem objetivos, sem desejo, sem fazer; isso não pertence à prática espiritual; nós não queremos que objetivos, desejos e atividades contaminem nossa prática espiritual. É uma visão bem comum.
Mas o caminho não ir a lugar algum não significa não tentar ou não fazer. Pelo menos, originalmente, não era este o significado: não tente, não faça. Se eu continuar nisso, algo não estará sendo entendido, talvez, e há potencial para um entendimento muito mais profundo. Sem objetivos, desejo ou atividade — se esta é minha concepção de prática e do caminho espiritual e da meditação, e alguns diriam “porque então não há dualidade, porque fazer algo, o desejo e os objetivos trazem a dualidade.” Um problema com isso é que se eu tenho essa concepção, estou na verdade introduzindo uma enorme dualidade entre minha prática e minha vida, porque minha vida envolve objetivos, e envolve desejo, e envolve o fazer. É necessário. Que tipo de vida não envolveria? Envolve grandes objetivos, belos objetivos, belas aspirações: quero trazer para o mundo algo que me parece realmente importante. E isso envolve pequenos objetivos como ir ao banheiro e acertar o alvo.
A vida envolve objetivos. Envolve desejo. Envolve atividade. E a despeito do jargão da “não-dualidade”, do contrário, eu estaria criando uma enorme dualidade entre minha prática espiritual e o restante da minha vida. Talvez haja algo para investigar nisso. Qual meu relacionamento com o fazer? Que assunções, que energias estão envolvidas no fazer, no esforço, nos objetivos? Há algo a investigar nisso. Talvez um dos maiores benefícios de algo como trabalhar na direção de samādhi ou se mover nessa direção, é que acabamos investigando o que é possível em relação à atividade, em relação ao esforço, com o desejo e com os objetivos. Porque podemos aprender, através da investigação, sabedoria em relação a essas coisas e desenvolver liberdade em relação a elas. Como ter tudo isso sem o auto-valor ser medido em relação a elas.
Isso abre uma liberdade muito mais ampla na minha vida e na minha prática. Não preciso evitar o que envolve alguma atividade, desejo e objetivos, seja na prática ou em minha vida — recuar de projetos criativos e artísticos, ou mesmo de serviços ambientais nos quais posso participar e posso ser avaliado a respeito; poderia recuar de oferecer o que pode ser meu chamado no mundo porque poderia gatilhar essas coisas que são investigadas a respeito do fazer, do desejo e dos objetivos, e o sofrimento envolvido nisso.
Se eu investigar, não tenho que evitar. Toda essa área está livre. Não preciso apenas esperar que eu possa fazer coisas numa forma que pareça que tudo acontece por si próprio: o poema escreve a si próprio, a pintura pinta a si própria. Não preciso que isso aconteça. Ou então meio que lamentar o surgimento do “eu”, “Ah, o eu, o eu, o ego.” O universo pode estar fazendo através de mim. Talvez esta seja uma forma linda de pensar a respeito disso: o universo está fazendo através de mim, quer eu sinta que eu estou fazendo ou não. E isso me liberta do fazer e do não fazer. Cuidado com onde nos tornamos contraídos em nossa visão.
Se samādhi, no sentido amplo em que estamos falando hoje, é parte da direcionalidade, se está incluído na minha visão da prática, haverá dificuldades. Claro que haverá. Assim como haverá dificuldades com um grande projeto artístico ou um grande serviço que você está realizando. Claro que há dificuldades, e parte da beleza da prática é aprender a trabalhar com dificuldades, aprender a encontrá-las e trabalhar de modo hábil com elas. Relativo ao samādhi e à prática da meditação, há dificuldades clássicas, eu acho que Yanai falará amanhã sobre os cinco obstáculos. Mas há muitas, de outros tipos. Todo esse negócio é realmente uma arte, vocês conseguem perceber isso, o senso de arte e de habilidade envolvidos, assim como a produção de uma cerâmica por um artesão? E perguntar “isto está acontecendo. Quais são as nuances? Como eu respondo a isto?” é parte do aprendizado.
Gostaria de dizer uma última coisa, porque está conectada a isso. Se tomarmos o significado da palavra samādhi não esta palavra em inglês, ‘concentration’ — se você ler o Buda, não é bem a que ele se referiu. Se você tomar mais um estado aberto, envolvendo todo o corpo, envolvendo um grau de unificação e bem-estar em qualquer grau (não precisa ser completamente incrível; apenas algum grau disso), se tomarmos isto como o significado de samādhi, então há algo importante a entender: isso, ou esta direção, esta avenida, o aprofundamento disto, é muito, muito mais dependente da abertura do coração do que podemos supor. Novamente, não é apenas sobre foco. Não é apenas sobre se retirar dos sentidos, andar por aí com os olhos para baixo. Isso pode ser hábil às vezes, mas é muito mais sobre abertura do coração. Como um ingrediente chave na desobstrução do samādhi, isto é muito mais significativo do que foco.
Por quê? Por que a abertura do coração é tão significativa? Porque quando o coração está aberto, se falarmos no corpo energético novamente, a energia já está suavizada. Já há um grau de desobstrução e abertura. A energia já está fluindo, já há algum alinhamento. Não está longe de samādhi, a partir da abertura do coração. No que isso implica? Que é realmente importante nutrir essa abertura do coração, talvez mais do que o assim chamado foco. O que isso significaria em termos de um retiro? O que nutre o coração? Você está se sentindo conectado com a comunidade, praticando junto? O coração está aberto em gratidão e apreciação? Você está conectado com a natureza? Há um senso de amor, inspiração e beleza? Essas coisas, alimentando o senso de beleza, inspiração, gratidão, união, conexão, tudo isso nutre profundamente. Isso abre o coração, e é muito mais significante do que às vezes percebemos.
Então — arte é uma palavra muito forte; há uma destreza em estar em retiro, especialmente em um retiro solitário, como vocês estão. Há destreza. É tudo bem individual, e varia ao longo do tempo. Então experimente. O que é isso que nutre, que abre o coração, que tem realmente sua importância em cultivar e auxiliar samādhi? Experimente. Sinta. Onde eu estou? Como me sinto? Do que preciso? Posso perceber? Posso dar uma resposta? E isso inclui tudo. Então é a roda de cerâmica, mas ainda maior. Estou sentindo e respondendo. Abra os olhos, abra o coração para a beleza ao redor, porque isso é significante. O coração às vezes é a peça mais significativa.
Texto traduzido por Vinícius Dalí